Baudelaire dedicou-se a Mon coeur mis à nu de 1859 a 1865. Tendo no horizonte as Confessions de Jean-Jacques Rousseau e o projeto nunca realizado My heart laid bare, de Edgar Allan Poe (de onde, aliás, o título Mon coeur mis à nu), Baudelaire tem consciência de que a realização do seu projeto não será fácil, expressando a dificuldade, e por vezes a própria sensação de impossibilidade, em muitas das suas cartas pessoais. Baudelaire morre em 1867, não concluindo o projeto. O que deixa são notas, planos de texto, parágrafos avulsos, trechos a serem incluídos em textos futuros, listas de assuntos a tratar. Poulet-Malassis, amigo e principal editor de Baudelaire, fica encarregado de ordenar e encadernar os manuscritos referentes a Mon coeur mis à nu. Já a primeira publicação integral ficará a cargo de Eugène Crépet, que escolhe chamar o texto, se é texto, de Journaux intimes, interpretando (erroneamente) um projeto literário, ou, em certo sentido, um texto literário em processo de escritura, como diário. No Brasil, dispomos de quatro (re)traduções: Meu coração desnudado (Nova Fronteira, 1981), de Aurélio Buarque de Holanda; Meu coração a nu (Nova Aguilar, 1995), de Fernando Guerreiro; Meu coração desnudado (Autêntica, 2009), de Tomaz Tadeu; e Diários íntimos (Caminho de Dentro, 2013), de Jonas Tenfen. Este trabalho tem como objetivo central a análise dessas (re)traduções. Pretende-se discutir ainda a noção de retradução nos estudos da tradução, percorrendo autores como Berman (1990), Gambier (1994; 2012), Ladmiral (2012) etc.; e revisar a crítica literária sobre Mon coeur mis à nu, buscando problematizar tanto a postura de enxergá-lo como diário íntimo quanto a tendência de encerrá-lo em uma poética do rascunho (DIDIER, 1973) relativamente estanque e estável. Compreendendo a retradução como um espaço ético (CARDOZO, 2007) de relações (tensas) entre modos de ler e dizer o texto, buscamos identificar as posturas tradutórias em jogo em cada (re)tradução brasileira, isto é, de que maneira entendem e dão a ver Mon coeur mis à nu no sistema literário brasileiro. Para isso, recorremos não somente às próprias (re)traduções, mas também ao material paratextual (RISTERUCCI-ROUDNICKY, 2008), lugares em que os tradutores apresentam mais explicitamente seus entendimentos não apenas do texto em tradução, mas do próprio ato tradutório. Identificando em Mon coeur mis à nu uma textualidade altamente movente, fundamentada em tensões insolúveis (projeto e obra; processo e texto), percebemos que as (re)traduções brasileiras atenuam, ou mesmo apagam, essas tensões, fazendo escolhas tradutórias e editoriais que homogeneízam o texto, suprimem suas variabilidades e virtualidades e inscrevem Mon coeur mis à nu na memória do diário íntimo, da escritura puramente confessional, cujo valor reside mais no pessoal do que nas suas tensões e contradições, latências e potencialidades. Apontamos, como desdobramento, a necessidade de uma (re)tradução brasileira que se baseie exatamente na dimensão processual e variável de Mon coeur mis à nu, não na busca...