RESUMO -Considerando a necessidade de outros olhares sobre a complexidade do universo das travestis, este estudo objetiva descrever e analisar os repertórios interpretativos sobre as relações de amizade entre elas. Participaram 10 travestis do sudeste brasileiro. A entrevista individual semiestruturada foi o recurso metodológico escolhido, apoiada pelo caderno de campo. O estudo se baseou nas propostas de análise do discurso construcionista social. Cinco repertórios interpretativos sobre amizade foram identificados: Babado; Batalha; Família; Segredo e Uó. O uso dos repertórios, em diferentes arranjos, apresenta a maneira como as travestis contam sobre si, seja ressaltando seus potenciais, seja legitimando sentidos de marginalidade e estigma. Esses sentidos criam a possibilidade de existência entre elas e podem subsidiar a construção e implementação de intervenções e políticas direcionadas a essa população. Na busca por compreender o universo das travestis, mostra-se um risco prender o conceito do que seja "travesti" em um vocabulário natural e universal. Em diferentes contextos, seja o da militância, o científico, ou o do senso comum, os discursos sobre as travestis estão diretamente vinculados aos discursos sobre transexuais, homossexuais, mulheres e drag queens (Leite Junior, 2008). Essas delimitações fluidas entre as nomenclaturas aparecem nos discursos auto referenciados por travestis em um movimento que implode uma identidade fixa, demonstrando a recriação constante desse gênero e das matrizes identitárias no seu entorno.
PalavrasHistoricamente, as travestis estão associadas à androgenia. Da antiguidade grega até o período renascentista, a ambiguidade sexual relacionava-se diretamente à vivência mítica, cujo trânsito entre feminino e masculino era tido com algo mágico, poderoso e significativo culturalmente. Apenas no fim do século XVII, com a Modernidade, as travestis começam a ser situadas no lugar do desvio patológico, o que reverbera até a atualidade (Leite Junior, 2008). Na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde -CID-10 (Organização Mundial de Saúde, 2009) essas pessoas são vinculadas ao diagnóstico de travestismo bivalente (F. 64.1) e de travestismo fetichista (F. 65.1).Ao mesmo tempo, as travestis demarcam hoje um lugar questionador por transgredir a lógica do sexo naturalizado e por desejar e reinventar um feminino. Apesar da vulnerabilidade e da convivência com o que Butler (2003) chama de abjeção, as travestis traduzem a vida numa busca pelo feminino, que segundo elas, dão sentidos às suas práticas (Benedetti, 2005). O conceito de abjeção remete às zonas inóspitas em que se identificam os corpos que não estão de acordo com a lógica inteligível do sistema binário de gênero, ou seja, zonas que estão fora do "domínio dos sujeitos", termo que Pelúcio (2007) associa às travestis após terem seus corpos modificados. Nesse lugar (in)subordinado, as travestis buscam, desde 1993, uma organização política no Brasil por meio de encontros nacionais e regionais. Em 2...