IntroduçãoNas discussões sobre as interpretações do Brasil e a identidade da cidade do Rio de Janeiro no princípio do século XX, tão em voga em nosso meio acadêmico, o interesse pela favela ocupa um lugar secundário. 1 Escreve-se muito sobre a pobreza, mas o olhar do cientista está voltado para o cortiço, para o sanitarismo e para a reforma de Pereira Passos. Pergunta-se "que país é este?", mas na análise da constituição deste país são priorizadas sobretudo as questões da raça e da classe trabalhadora. Descreve-se o mercado de trabalho urbano, mas reduzido às fábricas e ao trabalho fabril. Fala-se de lutas e diversidades de correntes, mas a relevância cabe ao movimento operário e sindical. Discute-se associativismo e participação, mas principalmente em relação aos partidos, ao patronato e à classe operária. As camadas populares, que nas primeiras décadas do século XX são analisadas sobretudo sob o ângulo dos laços entre cultura e política, quando aparecem, é sob o rótulo de "povo", no cortiço ou nas ruas do centro do Rio de Janeiro, driblando sua exclusão política por meio de movimentos de revolta dos tipos mais variados.A favela, sua história e seus moradores têm, assim, ficado à margem do interesse da grande maioria daqueles que vêm estudando hoje, seja o pensamento social no Brasil da Primeira República, seja a cidade-capital na sua missão civilizadora e política. Forma geográfica e social considerada àquele tempo como de pouca expressão, a favela não tem lugar, não constitui peça do jogo de cartas da história inicial da República ou do mosaico social do Rio de Janeiro de então. Mas, por que essa omissão, essa negligência?O objetivo deste artigo é, justamente, introduzir a favela no debate político e social do início Antes de mais nada, farei alguns comentários sobre a origem deste trabalho e sua orientação. Ele é parte de um estudo mais amplo em que o tema da favela no Rio de Janeiro é revisitado a partir de uma vasta bibliografia de 526 títulos levantada pelo Urbandata. 3 Tal conjunto de textos nos permite reconstituir a evolução das representações sobre esse espaço social a partir de marcos e momentos que fogem à periodização tradicionalmente utilizada. Em outras palavras, a história da reflexão sobre a favela -a sua história intelectual -não deve ser confundida com a sua história propriamente dita, baseada em datas, eventos e conjunturas, marcada, fundamentalmente, pelas diferentes ações/intervenções implementadas pelo poder público em distintos momentos político-administrativos. 4 O exercí-cio ora proposto, baseado em uma leitura que não segue a historiografia hoje consagrada, implicará, portanto, um rompimento com a periodização tradicional, mas sem descartá-la totalmente. Trata-se de dar início a uma sociologia da sociologia da favela, na qual examinarei as origens e a constituição de um pensamento savant sobre esse fenôme-no social, privilegiando seus atores, vinculações, interesses, representações e ações.Considerando a literatura disponível em seu conjunto, pode-se distinguir dois grandes perío-dos...