IntroduçãoEste artigo trata de transformações do ritual e da política entre os povos do complexo multiétnico e multilíngue do Alto Xingu, a partir de uma investigação sobre como não índios, dinheiro e mercadorias têm sido incorporados ao patrocínio de rituais mortuários. Em sua maior parte, ele se baseia na pesquisa de campo que venho desenvolvendo com os Kalapalo (falantes de língua karib), mas também utilizo informações e observações provenientes de outros grupos da região. Partindo da descrição de alguns rituais realizados nos últimos anos, discuto como sua objetivação enquanto "cultura" para os brancos 1 põe em movimento processos políticos de escala local, regional e nacional. Minha intenção é compreender como os rituais se tornaram uma dobradiça entre o mundo dos brancos e a política ritual indígena, e como isso pode afetar as formas xinguanas de produção de pessoas e coletivos. Além disso, também espero esclarecer alguns aspectos das ideias xinguanas sobre a chefia e a noção de "dono".Nos meses de agosto e setembro, tornou-se comum ver circulando pelas redes sociais convites para os rituais mortuários realizados pelos povos do Alto Xingu (o famoso Quarup, no qual chefes e outras pessoas são homenageados sob a forma de efígies de madeira). Alguns têm se tornado grandes eventos, com a ampla participação de políticos e personalidades públicas, mobilizando muito dinheiro, setores do Estado, pautas nacionais e projetos de "etnodesenvolvimento". Para os povos da região, de um modo geral, trata-se de aproveitar um momento da produção de sua socialidade para se relacionarem, de forma intencional, coletiva e (mais ou menos) controlada, com os brancos. Os xinguanos sabem bem o poder de atração que têm seus grandes rituais. Foi a participação em um sistema articulado por tais eventos coletivos que permitiu a assimilação de uma diversidade de povos no decorrer de seus mil anos de história (Heckenberger, Fausto,