DEBORA BREDER E PALOMA COELHO Quero a mescla colorida, confusa e misteriosa da natureza. Que se unam vegetais e algas, bactérias, invertebrados, peixes, anfíbios, répteis, aves, mamíferos, até chegar ao homem e seus segredos.A ideia de mescla, de indefinição e de ambiguidade aludida nesse fragmento constitui o cerne do universo elaborado por Pedro Almodóvar (2011), inspirado na obra Tarântula, de Thierry Jonquet.A existência dos seres vivos está permeada por duas forças continuamente confrontadas: o caráter contingente, aleatório da natureza; e a racionalidade científica com seus esforços de identificação, classificação e mensuração. Paradoxalmente, a mesma ciência que se empenha em definir e organizar racionalmente os elementos e fenômenos, tornando-os compreensíveis em sua especificidade, também é perpassada por um desejo de, se não sobrepor-se à natureza, ao menos reproduzir sua capacidade de criação. Isso implica, assim, intervenções que subvertem o princípio originário desses elementos, e essa fusão torna mais ambíguas as definições, mais obscuros os limites entre o natural e o artificial.As intervenções científicas nos corpos proliferam com os avanços das tecnologias, interferindo no curso vital e biológico: os contraceptivos, os métodos de reprodução artificial, os anabolizantes, as cirurgias estéticas... Procedimentos que, cada vez mais, deslocam os limites entre o orgânico e o tecnológico, e tornam fluidas as rígidas demarcações da natureza. Ademais, não são apenas as interferências anatômico-químico-estruturais que agem sobre os indivíduos. Qualquer ser social é permeado por constantes investimentos discursivos em seus corpos ao longo da vida, uma série de mecanismos que os situam e definem a sua experiência a partir de tecnologias também muito precisas, mas que, ao contrário dos procedimentos biotecnológicos, operam mediante esforços para ocultar-se como um artefato. Sendo assim, se torna complexo delimitar o que é essencialmente natural nos indivíduos, considerando que não há experiência anterior aos discursos e práticas sociais por meio dos quais esses corpos se constituem.O gênero, sendo o primeiro princípio de classificação dos indivíduos, é um dos principais reguladores da experiência por ser o elemento que norteia a posição desses sujeitos na vida social, incidindo sobre os corpos por meio de dispositivos que, como afirma Michel FOUCAULT (1999), os disciplinam e os "normalizam" conforme técnicas de saberpoder, legitimando formulações discursivas como verdades a-históricas e inquestionáveis. Os sujeitos crescem, assim, sendo educados sob uma ideia de "verdade" sobre os corpos, os gêneros, o desejo e a sexualidade e, consequentemente, qualquer divergência nas formas de concepção e vivência dessas categorias é tratada como antinatural, como um "desvio".O longa-metragem A pele que habito, do cineasta espanhol Pedro Almodóvar (2011), perscruta esse universo, na medida em que interroga o olhar dogmático sobre a constituição de corpos, gêneros e identidades. Aqui a mescla deixa de ser uma transgressão ...